A Insurreição no Equador: Por Dentro da Comuna de Quito

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Uma Entrevista Direto da Linha de Frente

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No início de outubro de 2019, uma onda de protestos tomou as ruas do Equador contra os cortes no subsídio da gasolina e, consequente aumento dos custos de vida. A agitação se transformou no maior levante popular do país das últimas décadas. Marchas indígenas chegaram à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento e milhares de manifestantes enfrentaram as forças policias do presidente Lenin Moreno, obrigando o governo a mudar sua sede da capital do país para tentar escapar da insurreição popular. Moreno é o sucessor e ex-vice presidente de esquerda Rafael Correa, que chegou ao poder impulsionado pelos movimentos sociais da década de 1990 e governou o país por 12 anos sob o mesmo padrão neoliberal e pacificação/cooptação dos movimentos sociais aplicado por outros governos de esquerda na América Latina – como PT no Brasil. A convergência de vários grupos do campo, da cidade, estudantes, mulheres e indígenas foi o que permitiu uma radicalização da luta que se transforma agora numa insurreição popular. Foram contabilizados até agora 554 feridos, 929 prisões e 5 mortes nos 9 primeiros dias repressão as manifestações.

Na segunda-feira de manhã, dia 14 de outubro, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador anunciou que o presidente recuou e concordou em retirar o decreto 883, a lei de austeridade (conhecido como paquetazo) e o substituiu por novos acordos a serem construídos com os movimentos indígenas. Mas a Confederação de Nacionalidades Indígenas (CONAIE) anunciou que as lutas continuam, exigindo a saída dos Ministros da Defesa e do Interior, responsáveis pela violenta repressão aos protestos.

Conduzimos essa entrevista com companheiros diretamente das barricadas nas ruas do Equador para debater algumas das questões mais relevantes sobre a mobilização. Essa entrevista surgiu anteriormente do portal de camaradas do coletivo Facção Fictícia

Manifestantes em confronto com a polícia, dia 8 de outubro de 2019. 8.


Os governos do Brasil, Argentina e instituições ligadas à União Europeia declaram apoio ao governo de Lenin Moreno no Equador e denunciam a revolta popular da classe trabalhadora e povos indígenas. Obviamente, essas instituições sabem que as políticas de austeridade também estão em sua agenda e temem que o mesmo cenário se espalhe pelas Américas e outras partes do globo.

Como vocês enxergam a resistência às políticas de austeridade e corte de subsídios afetando a vida cotidiana no Equador? Qual o caminho que, na sua opinião, levou a população das cidades e aos indígenas a dizer basta? Existe um sentimento anticapitalista compartilhado nas ruas?

A resistência que está acontecendo nesse momento que já tem oito dias, já constitui uma data importante, um evento histórico. É a maior revolta dos últimos anos, historicamente não sei, mas seguramente é a maior greve dos últimos anos, que tem como protagonista os indígenas, porque os levantes do passado não duraram tanto tempo como está durando agora.

A austeridade e a política de redução de subsídios afetam a vida cotidiana no Equador, mas creio que há uma divisão de classe no que está acontecendo nesses dias na cidade de Quito e no Equador inteiro. Há uma parte da população que não entende as razões do protesto e que dizem que na verdade o governo não está aumentando o preço da gasolina mas apenas retirando um subsídio que existia. O que não entendem é que aumentar a gasolina é aumentar o preço das passagens, por exemplo. Um aumento de 10 centavos para um estudante de universidade pública é muito. Comprar alimentos nesse período também aumentou. Para as pessoas que tem negócios, que vão comprar coisas para seu uso cotidiano e ganham o mínimo, isso os afeta muito. Por exemplo, o saco de batata que estava a 18 dólares há 10 dias agora está de 30 a 35 dólares. Digamos que há um efeito imediato do aumento do preço da gasolina, já que os subsídios fornecidos anualmente permitiam um acesso maior a cesta básica e a outros tipos de bens de consumo. Além disto, a maior parte dos alimentos, vegetais e verduras que são cultivadas na Sierra (a região dos Andes) ou, por exemplo, as bananas cultivadas nas plantações da Costa, são todos transportados em caminhões a diesel. A maior parte dos ônibus urbanos, também. Há uma conexão entre os subsídios e a cesta básica, se aumenta um aumenta todos os preços, como já vem aumentando. E como disse, há uma questão de classe, a classe média pode ser que não sinta essas medidas, mas a maior parte da população já está sentindo. E os indígenas sabem que não vão conseguir vender seus produtos, e quando tiverem que vender para as pessoas da cidade, vão ganhar muito pouco. No final, acaba sendo uma cadeia na qual o produtor direto é o que vai ganhar menos, e eles sabem disso. É necessário que se entenda que aqui o alimento nas grandes cidades chega pelo campo, então há aí um efeito direto do aumento do preço da gasolina sobre os pequenos produtores no campo, onde a maioria dos companheiros indígenas vivem.

Sobre o sentimento anticapitalista nas ruas, a esquerda durante os últimos 12 anos esteve muito dividida, desde que o Rafael Correa chegou ao poder, um governo que se dizia de esquerda e que chegou ao poder capitalizando os protestos sociais dos anos 90 e da primeira década dos anos 2000. Desta forma, muito dos protagonistas destes tempos de luta entraram para o governo. Durante esses anos haviam pessoas que acreditavam neste projeto de governo, e que depois se deram conta que ele seguia uma direção muito capitalista. Isso impediu que houvesse uma verdadeira união na esquerda.

Agora, neste momento histórico, não creio que houve um processo de crescimento pelo qual os movimentos sociais estavam articulados até chegar a este momento de explosão. Mesmo se aconteceram diversas coisas no campo social nos últimos anos, não havia um encaminhamento claro a respeito da organização revolucionária e comunitária, digamos. É como se os movimentos sociais estivessem adormecidos e, da noite para o dia, graças ao “paquetazo”1, todo o povo de repente se uniu, e isso permitiu que se radicalizasse a luta. Houveram, por exemplo, muitos bloqueios nos bairros, nos arredores das cidades, em pequenos povoados e isso manteve vivo os 8 dias de paralisação em que estamos.

Uma marcha de milhares de indígenas chegando em Quito.

No dia 8 de outubro, milhares de indígenas chegaram marchando à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento. Como se deu esta mobilização indígena na cidade neste dia? Em torno de quais pautas e ações eles estão se organizando?

Na realidade os indígenas chegaram no dia 7 de outubro, na segunda-feira houve uma batalha campal na cidade de Quito que durou 5 ou 6 horas entre sobretudo estudantes, movimentos sociais e cidadãos de Quito que procuravam manter a polícia ocupada para permitir a entrada dos companheiros indígenas. Lembramos que estamos vivendo em Estado de Exceção, então os militares estão nas ruas e tinham bloqueado neste momento as principais entradas de Quito, as entradas Norte e Sul, para impedir que os indígenas vindos de outras províncias pudessem entrar. Mas, estes estavam tão bem organizados, que não teve inteligência militar capaz de parar a sua determinação. E o fato da luta ocorrer no centro da cidade, também permitiu abrir brechas para que os indígenas pudessem chegar até o centro histórico.

Bem no momento em que conseguimos que a polícia recuasse, vimos chegando os caminhões cheios de gente, e as motos que acompanhavam a caravana indígena, foi um momento muito emocionante.

Eles foram diretamente até o Parque El Arbolito, ao lado da Universidade Salesiana onde está organizado um apoio logístico ao movimento. No dia seguinte se convocou uma concentração no Parque El Arbolito e foi decidido tomar a Assembleia. Chegando lá, uma primeira delegação entrou e aos poucos foram entrando mais gente, enquanto havia milhares de pessoas na porta da Assembleia querendo entrar. A polícia lançou bombas de gás no meio das pessoas, o que criou um movimento de pânico. Pessoas poderiam ter stido mortas pisoteadas porque muitos, não podiam respirar, outros muitos corriam em várias direções. Enquanto isso a polícia continuava atirando bombas de gás e balas de borracha nos manifestantes. Nesse momento começou uma repressão muito grande.

A Assembleia, estrategicamente, é como um pequeno forte, situada em cima de um morro; para protege-la, a polícia se posicionou em um ponto mais alto e tinha condições de acertar os manifestantes com franco-atiradores. Consequentemente houve um número muito grande de feridos e alguns mortos, já que policiais estavam em uma posição estratégica para reprimir.

A ideia de ir até a Assembleia era uma das ações que o movimento indígena havia decidido executar durante estes dias que estiveram em Quito. Até ontem (quarta-feira, dia 9/10), havia bastante preocupação, porque não havia estratégia clara, enquanto o Governo não recuava e estava aumentando a repressão. Inclusive, o fato da polícia ter lançado bombas de gás dentro de centros de paz e espaços de acolhimento, como a Universidade Salesiana e a Universidade Católica, causou muita indignação e, de uma certa forma, atingiu o Governo porque a notícia circulou, apesar do cerco midiático que as grandes mídias e o Governo estão tentando manter.

Hoje (quinta-feira, dia 10/10) pela manhã, 8 policiais foram detidos pelo movimento e trazidos para a grande assembleia popular e indígena na Casa da Cultura onde havia cerca de 10.000 ou 15.000 pessoas. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação que estavam lá acabaram transmitindo ao vivo a assembleia, mesmo que não o fizessem da melhor maneira. Isso permitiu de certa maneira quebrar o cerco midiático divulgando, por exemplo, o fato que um companheiro liderança indígena de Cotopaxi, Inocencio Tucumbi, foi morto. Ele desmaiou após ter inalado muito gás lacrimogêneo e em seguida foi pisoteado por um cavalo da polícia. Isso até então não tinha saído na grande mídia. De repente apareceram os mortos nos grandes canais de TV’s e foi se tornando evidente para o grande público que sim, o Governo está matando e está criando um nível de repressão muito grande!

Manifestantes invadem parlamento em Quito, dia 8 de outubro de 2019.

Então, a estratégia de hoje teve êxito. Como eu te disse, ontem ainda não havia estratégia muito precisa, mas hoje já estávamos mais organizados. Houve uma missa, e foi organizado um corredor humano de 1 km da Casa da Cultura até o Hospital para poder encaminhar o corpo do nosso companheiro, muita gente aplaudiu, foi também um momento de grande emoção. Nos despedimos dele com muita honra, porque era um grande companheiro de luta. Também prometeu-se naquele momento que em sua memória a luta iria continuar. Também foi um momento para juntar forças, para descansar, para pensar sobre a estratégia a seguir nos próximos dias e para compartilhar essa dor geral pensando naqueles que caíram, naqueles que estão feridos e nos dar animo para seguir lutando.

A exigência da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) em seguida foi clara, dizendo que se o Governo radicalizasse a violência, obviamente a rua também iria em resposta se radicalizar.

Chegando a noite, os policiais foram libertados e foram entregues na frente da Assembleia, em meio à uma grande manifestação. Pelo fato da Assembleia e da Casa da Cultura estarem próxima, havia uma espécie de manifestação-plantão permanente na frente da Assembleia e a zona estava repleta de manifestantes. Havia esta noite cerca de 30.000 pessoas no local. Foram então entregues os policiais e os indígenas deixaram claro que eles haviam sido detidos por terem entrado em uma zona que havia sido declarada zona de paz. Foram portanto detidos, mas estavam sendo entregues são e salvos. Diferente da prática da polícia, pois no dia em que a Assembleia foi tomada, houveram cerca de 80 presos. E quase todos foram soltos, ontem, com marcas de violência e machucados.

Multidão tomando viaturas da polícia em Quito, 9 de outubro, durante a greve nacional.

Os povos indígenas declaram seu próprio estado de exceção em seus territórios, ameaçando prender agentes do estado que ousariam entrar nessas regiões. Como se dá essa autonomia e organização territorial dos povos? E quais são esses povos? Sobre o Estado de Exceção decretado nos territórios indígenas, isto explica também o episódio todo que eu te contei. Pois neste momento a Casa da Cultura e toda a região ao redor estão sendo considerados como territórios indígenas, então foi considerado que os policiais violaram a soberania excepcional dos povos indígenas e por isto fora detidos. Isto aconteceu também em outros territórios indígenas nesta semana, onde foram detidos militares que violaram estes territórios, foram sequestrados ônibus e veículos blindados de militares. Isto acontece porque os povos indígenas, desde há tempos já exigem a autonomia em seus territórios e possuem sua própria lei indígena. Quando acontece algum problema dentro destes territórios, alguém roubando ou causando problemas, o caso é resolvido pela justiça indígena, sem passar pela justiça estatal.

Então, a partir do momento em que o Governo decretou o Estado de Exceção, em resposta os indígenas decretaram também o Estado de Exceção em seus territórios como uma forma de diminuir o nível de repressão e também de pressionar os militares e a polícia que, seja na rua ou nos territórios, reprime os povos, para que estes saibam que correm o risco de serem detidos, como aconteceu. Como disse, em diferentes territórios, militares e policiais foram retidos, desarmados e, depois de alguns dias, foram soltos após ter passado pela justiça indígena. Isso funciona claramente no sentido de expor na frente da pessoa acusada tudo que ela fez, dependendo do delito cometido e em relação a este se decide o castigo a ser sofrido pelo preso de modo comunitário.

E sobre as etnias, digamos que a CONAIE está dividida entre todos os povos indígenas e outros povos incluindo cholos (mestiços) e povos negros do equador. Existem os indígenas do litoral, os povos da Serra Norte, da Serra Central, da Serra do sul e os do oriente, da região Amazônica e todos se articulam através da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador.

Existem rumores – criados pela grande midia vinculada ao governo – de que a CONAIE está fazendo acordos com o governo e parece que este último está tentando dividir o movimento entre bons e maus. Más nas últimas horas (10/10), no entanto, houve notícias de que não há acordo entre a CONAIE e o governo. Quanta chance essas tentativas tem de ser bem-sucedidas? Quanto a CONAIE estaria disposta a radicalizar o movimento ou negociar? E que influência ou representação efetiva a CONAIE tem em relação aos povos indígenas? É claro que houve rumores, fofocas, mentiras e falsidades feitas pelo governo e pela mídia que obviamente tentam dividir a luta popular que hoje está ocorrendo nas ruas de Quito e em todo o Equador. Deve-se dizer que essas grandes organizações como a CONAIE, o FUT (que é o maior sindicato dos trabalhadores do país) historicamente também tiveram momentos em que negociaram, em períodos de fraqueza, e essas negociações não chegaram a nenhum lugar. E, por serem grandes organizações, também estão dentro de um cenário super-político; portanto, às vezes os próprios movimentos os vêem como estruturas políticas ambíguas. Mas isso é normal, além disso, devemos ver a capacidade organizacional que eles têm, neste caso especialmente a CONAIE, com seu papel histórico, considerando que no passado ela conseguiu derrubar vários presidentes. Nesses dias também temos visto a força das agremiações de transportadores e motoristas de táxi que paralisam a cidade e aquela dos estudantes que saíram às ruas. A verdade é que os transportadores têm um papel histórico muito mesquinho no Equador e eles decidiram sair da greve logo de que conseguiram aumentar o preço das passagens. Enquanto as pessoas e especialmente os estudantes conseguiram manter a luta nas ruas e os indígenas imediatamente se juntaram. Tanto o movimento urbano quanto o movimento indígena logo conseguiram descentralizar a atenção que era inicialmente exclusivamente para os transportadores.

Então sim, houve esses rumores. Mas hoje também tem o fato de que houve atenção para os polícias presos e, com aquilo, os jornalistas que foram imediatamente para lá. Os líderes de cada grupo indígena e o próprio presidente da CONAIE, o Sr. Vargas, declararam publicamente que não vão negociar com o governo porque que o sangue dos mortos não pode ser negociado e que, para iniciar um diálogo, eles colocam como condição a eliminação do decreto 883 (o “paquetazo”), que o FMI deixe o país, e que a ministra do Interior Maria Paul Robles e o ministro da Defesa, Oswaldo Jarrín, renunciem imediatamente, pois são os culpados pela morte dos companheiros que caíram nestes dias.

Obviamente, há uma grande pressão das bases. Nos dias anteriores, havia poucas reuniões, principalmente de líderes e alto comando de organizações políticas Mas hoje (10/10) foi decidido fazer essa assembleia popular que durou muitas horas e toda decisão era fruto de uma consulta a população, as bases que estavam lá e que, como eu disse, eram umas 10 a 15 mil pessoas e tudo foi então decidido coletivamente. Também podemos dizer que a pressão das bases está permitindo que a liderança também tome decisões radicais, e não seja vendida, por desespero, por medo de ser presa ou por dinheiro que o governo desejar dar a eles por debaixo da mesa.

A CONAIE, em geral, tem uma enorme representatividade. No Equador, se você pensa nos povos indígenas, pensa diretamente na CONAIE. É uma organização muito grande, com uma estrutura política incrível e também comunicativa, estratégica. Hoje vimos muito bem como eles conseguiram “virar la tortilla” e colocar o governo em dificuldade.

Bem-vindo à Comuna de Quito: uma barricada perto do prédio da Assembleia Nacional dia 12 de outubro.

O governo acusa Correa de estar por trás das manifestações. Mas, ao olhar aquelas, não parece que os correistas estejam tendo um papel protagonista. Qual é o papel de Correa na fase atual, tanto nas marchas quanto na possibilidade de cooptação e saída “pacífica” ou eleitoral do conflito?

Obviamente, o governo acusou Correa, acusou Maduro, disse que Correa havia viajado para a Venezuela e que a partir daí ele desenvolveu um plano para desestabilizar o governo. Agora eles também dizem que por trás do tumulto nas ruas estão o Latinquín, que é uma “pandilla” (uma gangue) e as FARC [Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, o grupo insurgente que travou uma guerra civil contra o governo por anos], ou seja, esse senhor não sabe mais o que dizer. Obviamente, culpar Correa é uma coisa que ele está acostumado, tem dois anos que Correa tem sido culpado de tudo. Apesar de Correa ser um corrupto que deve pagar pelos crimes contra a humanidade, pela repressão que ocorreu durante seus governos, pelos casos de corrupção, não se pode culpá-lo por tudo que é de responsabilidade do atual governo, que comanda o país há mais de dois anos. Então há essa acusação geral por parte de toda a direita que, neste momento, apóia Lenin Moreno e esse costume de culpar Correa toda vez que há uma crise: se falta dinheiro é porque Correa o levou; se há criminosos é porque Correa fez leis que liberavam criminosos; se há muitos migrantes é por causa da lei da mobilidade – o governo anterior sempre é o culpado.

Dito isto, apesar do fato de que nos últimos meses, no ano passado, nas mobilizações e marchas que contra o governo – que eram muito menores do que são agora, pois agora é uma verdadeira revolta – os correistas estavam sempre presentes e isso criava problemas para alguns movimentos sociais, que não queriam estar junto com eles. Isso nos fez pensar que eles ainda estariam presentes nas marchas desses dias, pois também são um grupo muito consistente. De fato, no primeiro dia foram marchar e foram reprimidos, no segundo também apareceram mas estavam por trás da marcha e queimaram dois pneus fora do Banco Central enquanto mais a frente os estudantes tentavam entrar no centro histórico e enfrentavam a polícia. Depois daquele dia os correistas praticamente desapareceram, as pessoas não lhe deram espaço. Hoje (10/10) estávamos fazendo entrevistas com alguns companheiros auto-organizados e perguntamos a eles: e Correa? E todos responderam com muita clareza: não sou correista, não estou aqui por Correa, Correa não nos paga. E isso é evidente: os correistas não estão nas marchas, certamente um ou outro há, mas não estão de forma organizada.

Dois dias atrás, no dia da assembléia, o padre Tuárez – presidente do Conselho de Participação do Cidadão e foi demitido por ser fanático religioso – disse que Deus havia lhe dito que Correa era o Salvador e que ele precisava voltar, coisas assim. Ele tentou se infiltrar nas mobilizações e as pessoas o colocaram para correr. Ou seja, essa possibilidade não existe. Isso também é o interessante: nem os partidos políticos nem os políticos tradicionais foram capazes de se apropriar do que está acontecendo. As únicas autoridades digamos mais “políticas” que têm legitimidade e que neste momento estão liderando as mobilizações são as do sindicato FUT e da CONAIE. Na verdade, é todo o povo que fica nas ruas, e isso é muito assustador para a direita, para a burguesia, para os banqueiros, para os “donos” do país porque a rua não aceita nenhum dos líderes políticos. Então, a solução pode ser que o “paquetazo” caia e que por algum momento retorne a calma, mas obviamente isso não poderá durar muito tempo. Outra possibilidade é que Lenin Moreno renuncie, e o “paquetazo” permaneça e o governo tentaria distrair o povo que ele se acalme e para que a atenção fique no fato de Moreno ter saído ou o fato de que um governo popular possa realmente ser construído, um governo nascido das ruas – e esses rumores já estão circulando. Então imagine o que estão pensando a direita, a burguesia equatoriana. Eles não absolutamente podem permitir que as ruas ganhem, porque isso significaria que depois de 12 a 13 anos se mostra às pessoas algo que na percepção comum não existe mais, isto é, ir às ruas é bom e se você se organizar, se resistir, se continuar insistindo, alcançará seu objetivo.

Essa seria uma reação em cadeia que permitiria novamente que as pessoas acreditassem em suas possibilidades. A direita sabe disso e é por isso que estão todos unidos para evitá-lo.

Barricadas em Quito dia 31 de outubro.

Como o bloco no poder está enfrentando as manifestações? Existem divisões possíveis entre os partidos, nas Forças Armadas ou em outros lugares?

O bloco no poder está todo unido. Os maiores líderes políticos (Lenin Moreno, Guillermo Lasso, Jaime Negot, Álvaro Noboa) estão todos unidos. Correa obviamente não diz nada porque o que ele quer fazer é capitalizar o que está acontecendo nas próximas eleições. Ele sabe bem que não é conveniente para ele falar muito porque o governo já está dizendo que a culpa é dele e não é estratégico para ele se envolver demais. Basta que as pessoas pensem que “tudo era melhor quando ele estava lá” e nas próximas eleições é muito provável que ele possa ganhar. O presidente está agora em Guayaquil, que é o refúgio dos social-cristãos, o partido de direita, que todos temiam que fosse vencer na próxima eleição. Mas agora não parece possível porque, certamente, ele não vai ter o voto da Serra, de cidades como Quito, Ambato, Riobamba, das comunidades indígenas. Então todos estão unidos, tentando usar todos os meios possíveis para criminalizar o protesto.

Quanto às Forças Armadas, agora temos um Ministro da Defesa treinado em Israel, pelo Mossad e pela Escola das Américas, um louco fascista, um militar. Há quatro dias, o governo criou uma cadeia nacional de uma hora, na qual esse louco falou metade do tempo, ameaçando, dizendo que as Forças Armadas saberão se defender, que não devem ser provocadas, que as pessoas precisam manter a calma porque se não a repressão será feroz, como se estivéssemos na ditadura. Isso claramente levou as pessoas a serem bastante indignadas. Ainda não se sabe, não existem dados precisos sobre deserções dentro do exército ou da polícia. O certo é que o papel histórico do exército sempre foi reprimir o povo e, em um determinado momento, quando o descontentamento popular já é evidente, eles tentam alcançar uma estratégia para impedir a existência de um governo popular e se apresentam como mediadores para criar um novo governo, mas que geralmente sempre termina sendo pior que o anterior. Então é possível que em algum momento as Forças Armadas comecem a criar rupturas dentro da organização popular e também a tirar o apoio do presidente.

Crianças e manifestantes esperam comida em uma cantina comunitária em Quito.

Como o movimento transformou a vida cotidiana na cidade de Quito? E como se organiza o dia dia nos espaços ocupados pelos manifestantes?

É impressionante o nível de solidariedade que se instalou aqui na cidade, que alguns tem rebatizado a Comuna da Quito, justamente porque não são apenas indígenas, não são apenas os estudantes, não são apenas manifestações. Há bloqueios feitos nos bairros que estão organizados. Como no Centro Histórico, o bairro de San Juan por exemplo, se organiza autonomamente. Quando a manifestação chega lá, pessoas te dão comida, água. No dia de ontem, quando a tensão se deslocou para os arredores de San Juan, na parte alta do Centro histórico, haviam vários moradores que chegavam trazendo pedras, pessoas que desde as janelas das casas davam aos manifestantes materiais para poder queimar ou para se proteger do gás de pimenta. Na porta das casas, haviam pessoas que nos davam água.

Dentro das casas haviam pessoas que recebiam e ajudavam os feridos, oferecendo um espaço para que os médicos voluntários pudessem os atender, já que as ambulâncias não conseguiam chegar até lá. Tem muitos médicos voluntários, muitos deles estudantes de medicina, de enfermaria, que estão ajudando nas ruas, dando assistência emergencial aos feridos para evitar que haja mortos ou que as feridas se agravem. Temos portanto um aparato médico incrível, muito organizado.

Temos locais de recepção de alimentos, faço parte de um destes grupos no Whatsapp porque o lugar onde eu trabalho está funcionando como ponto de coleta de produtos. E por todo centro, por todas as Universidades, tem lugares funcionando como cantinas populares, como espaços de acolhimento para as pessoas de fora que vieram à Quito para lutar. Estes lugares estão cheio de doações e, por vezes, nem sabem onde levar todas estas doações que recebem. Tem cozinhas comunitárias, onde pessoas vem oferecer seu tempo para preparar alimentos. Ontem, eu estava conversando com pessoas de uma cozinha comunitária, no Parque Arbolito, havia ali um senhor que foi ferido enquanto a polícia atacava o Parque, porque apesar do ataque a cozinha continuou no local, ajudando as pessoas. Foi um bairro de Quito que montou a cozinha, se organizando através de uma igreja evangélica, estava ali o pastor e suas três panelas gigantes. Me disseram que haviam alimentado 700 pessoas apenas neste dia. Conheci também uma senhora muito humilde do sul de Quito, com a qual eu conversei, que tinha um pequeno negócio e veio pela tarde com uma pequena van, junto com seu filho, passando pelo Parque distribuindo café e pão para as pessoas. Então realmente, a comida não falta, há comida por toda parte, hoje mesmo eu já comi quatro vezes, por todo canto há pessoas te chamando para comer algo e às vezes se ofendem se você recusa porque é uma forma de doação.

Tem pessoas organizadas para apagar os gases de pimenta, ou para cuidar das pessoas atingidas pelos gases. Tem todo tipo de organização, tem pessoas que se encarregam de cuidar das crianças. (Tosse forte, “foi mal, é o efeito dos gases nos pulmões”.) Tem pessoas que organizam brincadeiras para as crianças. Tem pessoas que passam o dia cantando, tocando música. É realmente muito muito interessante o que está acontecendo aqui. Por isto, alguns falam aqui da Comuna de Quito, alguns dizem que de certa forma já ganhamos neste ponto de vista, no nível da auto-organização espontânea. Mas foram muitas assembleias para poder organizar o que está acontecendo agora. E creio que esta é a maior vitória, e esperamos que isso poderá continuar, este espírito de auto-organização. Este fato de mostrar que juntos já podemos resistir 8 dias e paralisar um país por 8 dias, para dizer que nossos direitos sejam respeitados.

10 de outubro: esses oito policiais foram mantidos em cativeiro por indígenas após entrarem em seu território.

Como o movimento planeja se organizar a partir de amanhã (dias 10 de outubro)??

Hoje, durante todo o dia (10/10), houve uma manifestação, com a entrega dos policiais que haviam sido detidos, com o chamado para continuar a luta e os indígenas ainda estão aqui em Quito. Hoje foi um dia de tranquilidade, paz, luto. De fato, a CONAIE anunciou três dias de luto, não sei se isso significa que nos próximos três dias haverá apenas marchas pacíficas. Mas acho que estrategicamente também pode servir um pouco, por exemplo, hoje foi um dia “pacífico”, mas muitas coisas foram alcançadas, a atenção da mídia foi alcançada, a barreira da mídia foi quebrada. Apesar do fato de que eles cortaram nosso sinal de telefone celular e a Internet, o que dificultou a documentação de mídias independentes e pessoas desde os telefones celulares particulares. Então, acho que todos estamos nos preparando para uma longa resistência, se no início pensávamos que poderia terminar de um momento para o outro, depois do que vimos nesse últimos dias, entendemos e temos a sensação de que isso durará muito mais tempo – e é por isso que devemos organizar estrategicamente os momentos de luta e não queimá-los imediatamente. É importante tentar gerar opinião pública, quebrar a barreira da mídia, criar novas estratégias de combate, além das manifestações, dos momentos de riot, dos momentos de conflito com a polícia. Isso não significa que uma coisa esteja certa e outra errada, mas que precisamos usar todas as ferramentas possíveis para obter a vitória.

Certamente a luta continuará! Hoje prometemos diante do caixão do camarada morto pela polícia, que a luta continuará!

  1. Paquetazo: refere-se o decreto 883 do governo de Lênin Moreno e seu pacote econômico, em espanhol usa-se a expressão para dar um sentido negativo